Jéssica Pereira Silveira
Enzo Marzotto Nunes
Durante o mandato de Jair Bolsonaro o país foi inundado por uma corrente militarista que atingiu diversas áreas do Estado, uma delas, a educação. Nesse contexto, o decreto o nº 10.004, de 5 de setembro de 2019 instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares - PECIM, cuja proposta seria a aplicação do plano de gestão militar em toda a rede pública de ensino do país.
O projeto teria o condão de aplicar estratégias de disciplina e hierarquia militares para promover a suposta melhoria na qualidade da educação brasileira. O texto ainda previa que o projeto seria desenvolvido concomitantemente entre estados, municípios e a União. Além disso, em relação às diretrizes, ampliava as funções militares ao atribuir a gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa aos oficiais e praças das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares. Paralelamente, em relação ao arcabouço econômico da proposta, previa uma modalidade de fomento na qual seria dado apoio técnico e financeiro para as escolas que aderiram ao plano.
Em resumo, o projeto buscava basicamente forçar que as escolas aderissem ao plano, pois só as que aderissem teriam os benefícios que a União deveria dar de forma equânime. Em razão de sua estrutura educacional decadente[1], o estado do Rio Grande do Sul aderiu ao programa através do Termo de Compromisso nº 202101594-8.
A possibilidade de implementação desse plano chamou a atenção da mídia e de entidades classistas de professores e trabalhadores da educação. Por conta disso, o escritório Rogério Viola Coelho, representou os interesses de CENTRO DOS PROFS DO EST DO RS SIND DOS TRAB EM EDUCACAO e INTERSINDICAL - CENTRAL DA CLASSE TRABALHADORA, ajuizando ação civil pública com a finalidade de determinar a sustação e a revogação da implementação deste plano nas escolas estaduais do Rio Grande do Sul, além de requerer a declaração da inconstitucionalidade do Decreto.
Diante dos objetivos do PECIM, os fundamentos da ação civil pública para alcançar a suspensão do referido programa têm como foco principal a violação do princípio constitucional da gestão democrática do ensino público, garantido tanto pela Constituição Federal quanto pela Constituição Estadual. De acordo com os advogados, a militarização imposta pelo PECIM subverte princípios como pluralismo de ideias, autonomia pedagógica e a participação efetiva da comunidade escolar.
Ainda, a fim de atacar o ato de adesão do estado gaúcho, foi alegada a existência de uma inconstitucionalidade formal, ou seja, que a maneira pela qual se instituiu o plano afrontava com os valores e normas da Constituição de 88. Sobre o tema, o artigo 214 define que somente a lei definirá plano nacional de educação, não podendo um Decreto presidencial tratar sobre o tema, sob pena de infringir a hierarquia das normas constitucionais.
Em segundo plano, cabe destacar que havia vícios materiais na norma atacada. Em outras palavras, o ato de adesão feria um conjunto de normas constitucionais de caráter mais objetivo, não processual. Nesse contexto, contrariava o ideal de gestão democrática do ensino público, previsto no art. 206, VI da Constituição, o qual pressupõe a participação efetiva de vários segmentos da comunidade escolar na gestão das políticas públicas de educação. Além disso, fere outras normas consagradas na educação como a liberdade de cátedra; a autonomia dos estabelecimentos de ensino na gestão administrativa, financeira e pedagógica.
Por fim, cabe especial destaque que a militarização das escolas fere princípios básicos da educação, tais como: dignidade da pessoa humana, igualdade de condições ao acesso e à permanência escolar; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar pensamentos, pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, bem como a valorização dos profissionais da educação. De forma geral, nenhum desses princípios é condizente com as diretrizes de hierarquia e disciplina presentes no plano apresentado, carregando consigo, pelo contrário, a diminuição dos espaços de diálogo, construção coletiva e pluralidade de ideias. O ensino e formação militar são incapazes de absorver os métodos pedagógicos da Educação Pública Universal, visto que invariavelmente cerceiam a liberdade de pensamento e demais princípios em prol da hierarquia e disciplina, substituindo o modelo participativo por um autoritário. Com esses fundamentos, a ação iniciou em 12/05/2022.
Em 24/06/2022 foi negado o pedido liminar pois não teria sido demonstrada a ilegalidade expressa do plano. Posteriormente, o estado do Rio Grande do Sul apresentou contestação, alegando que a União também deveria figurar no polo passivo e que a ação civil pública estaria sendo usada de forma equivocada para substituir uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Além disso, alegou que não haveria vícios formais ou materiais no Decreto, referindo que o plano teria caráter meramente auxiliar às instituições de ensino.
Depois de devidamente apresentada a réplica pela parte autora, o Ministério Público se manifestou. Para o parquet, não merecia prosperar a pretensão estatal de incluir a União na lide, visto que o que estaria sendo discutido seria justamente o ato de adesão do ERGS, portanto, lide estadual. Paralelamente, não havia o que se falar em inadequação do meio utilizado, pois o processo discutia a ilegalidade do Decreto Federal também diante da legislação estadual, sendo correto o processamento por ação civil pública. Posteriormente, o MP opinou pela procedência da ação.
Diante dos argumentos apresentados, o juiz Murilo Magalhães Castro Filho julgou procedente o pedido em primeiro grau em 30/06/2023. Nesse momento, declarou a ilegalidade do Decreto 10.004/2019 às escolas estaduais, de forma que não deveria ser implementado o referido modelo nas escolas de todo Estado.
Depois da referida decisão, sobreveio novo Decreto (Decreto n 10.611/2023) que revogou o plano absurdo de militarização do ensino. Com isso, durante a apelação promovida pelo ERGS, foi reconhecida a perda superveniente do objeto da demanda, extinguindo o processo.
Com esse breve relato do caso cabe concluir que, na verdade, o que se pretendia com o plano em questão era aumentar o poder das Forças Armadas no Estado, sequestrando a educação pública para seus interesses. Essa sistemática, fantasiada de melhoria para educação, poderia ter impactos alarmantes não só para as escolas, as primeiras atingidas, mas também para a produção científica de modo geral e, de forma mais abrangente, toda a sociedade. As instituições de ensino devem ser democráticas, plurais, publicas, devendo ser incentivadas pelo Estado independente de aderirem ou não a determinado plano. Em suma, para o bom funcionamento da educação, não cabem os ditames de hierarquia e disciplina intrínsecos ao militarismo do verde-oliva.
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