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O controle concentrado de constitucionalidade pode arrasar os efeitos gerados no controle difuso? Em que medida?

Por Beatriz Mendes Lourenço - OAB/RS 112.079


A coisa julgada constitui uma garantia processual fundamental e cláusula pétrea assegurada pela Constituição Federal de 1988. A partir dela, preserva-se a estabilidade da tutela jurisdicional, na medida em que aquela impede que uma matéria já julgada em definitivo seja novamente apreciada pelo Poder Judiciário.

Segundo Fábio Konder Comparato[1], no pós-constitucionalismo de 1988 não se pode encarar a coisa julgada apenas como uma garantia processual, isto é, um instituto que impede a reanálise de demandas sobre o mesmo objeto. Com efeito, a coisa julgada deve ser compreendida sob seu aspecto de garantia institucional, como protetora do direito à segurança jurídica. Assim, a coisa julgada transcende os limites do processo e protege o cidadão contra o risco da insegurança jurídica.  

Faz-se necessário delimitar tal conceito em razão da possibilidade de que, em decisão inédita, o Supremo Tribunal Federal entenda que é possível cobrar tributos retroativos de contribuintes que tiveram coisa julgada favorável no controle difuso para não os pagar, posteriormente modificada por novo entendimento desfavorável emitido pela Corte Constitucional no controle concentrado. Neste caso, os contribuintes que se encontravam sob a égide da estabilidade da coisa julgada podem sofrer as consequências de uma decisão retro operante que venha a piorar a sua situação jurídica.

Em breve contextualização sobre a temática, no ano de 1992, alguns contribuintes obtiveram em próprio favor decisão em sede de controle difuso de constitucionalidade, que dispensava o pagamento do tributo de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), em razão do entendimento de que a lei que instituiu o referido tributo seria inconstitucional. Todavia, em 2007, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a referida lei era constitucional, em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADI 15). A consequência direta da referida declaração de constitucionalidade consistiu na exigibilidade de pagamento do CSLL.

O liame da controvérsia, portanto, reside nos limites da coisa julgada no âmbito tributário, no caso de uma decisão favorável ao contribuinte tomada em sede de controle difuso de constitucionalidade ser alterada por decisão contrária ao contribuinte por via do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade. Questiona-se, então, como fica a coisa julgada que havia se formado em 1992?

A tese[2] firmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal foi a de que uma decisão definitiva passada em julgado, em relação a tributos recolhidos de forma continuada, perde seus efeitos caso a Corte se pronuncie posteriormente em sentido contrário. Esse entendimento se apoia em precedente do Ministro Teori Zavascki de que a coisa julgada cessa seus efeitos quando alterado o quadro fático e jurídico que a justificou. Todavia, remanesce a discussão acerca da modulação dos efeitos dessa decisão.

A possibilidade de cobrança retroativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) desde a decisão do Supremo em 2007 tem sido o posicionamento da maioria dos Ministros, sob o entendimento de que a existência de coisa julgada em favor de quem foi desobrigado a pagar o tributo gerou uma condição injusta para aqueles que necessitavam adimpli-lo.

Em relação à tese firmada pelo STF em fevereiro de 2023, a empresa TBM (Têxtil Bezerra de Menezes), além de outros envolvidos como amicus curiae, opôs embargos de declaração contra o acórdão, requerendo a modulação dos efeitos da decisão para que o tributo seja cobrado a partir da prolação do acórdão da tese firmada pela Corte Constitucional.

O entendimento predominante, por seis votos contra dois, tem sido pela rejeição dos referidos aclaratórios e de cobrança do referido tributo desde o julgamento da matéria em 2007. Apesar da complexidade da matéria, que não pode ser enfrentada em poucas páginas, concorda-se, a priori, com o voto dissidente do Ministro Luiz Fux, apoiado em Pontes de Miranda, segundo o qual “a coisa julgada não tem compromisso com a justiça ou com a verdade, ela tem compromisso com a estabilidade e com a segurança social”.

A nova tese que vem se formando na Suprema Corte infirma a soberania da coisa julgada, na medida em que permite que novo entendimento sobre determinada matéria se sobreponha à garantia de que a mesma questão não seja objeto de novo julgamento, à luz do art. 505, do Código de Processo Civil. Ao mesmo tempo, confere uma hierarquia superior ao controle concentrado de constitucionalidade em relação ao controle difuso, como se a coisa julgada formada pelas decisões dos tribunais inferiores ainda pudesse ou devesse passar pelo crivo do Supremo Tribunal Federal.

O posicionamento adotado pela referida Corte abre precedentes perigosos à segurança jurídica dos jurisdicionados. Por exemplo, com a vigência automática de novo entendimento do Supremo sobre matéria tributária de trato sucessivo, assume-que a desconstituição da coisa julgada independe de ação rescisória e, no caso das relações de trato sucessivo, de ação revisional. Tais institutos são limites democráticos ao direito fundamental à coisa julgada.

O instituto da ação revisional (art. 505, I, CPC) consiste no meio previsto no ordenamento jurídico para a revisão de relação jurídica de trato continuado quando há modificação do estado de fato ou de direito – tal como a alteração de entendimento pelos tribunais acerca da exigibilidade de um certo tributo. Ainda, a ação rescisória (art. 966 e seguintes do CPC) é o instrumento adequado para rescindir decisões transitadas em julgado, com hipóteses e requisitos específicos à desconstituição da coisa julgada, a exemplo do prazo de dois anos para a sua interposição.

 Logo, na medida em que é aberta margem para que se dispense a interposição de uma ação revisional ou de ação rescisória para a anulação da coisa julgada, bastando novo entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, a segurança jurídica resta abalada, assim como os direitos e garantias fundamentais, eis que a coisa julgada é intangível e imodificável. Sendo assim, o novo precedente da Corte Constitucional deve ser prospectivo e não retro-operante, já que esta última opção, como dito, implicaria em reformatio in pejus ao contribuinte anteriormente protegido por um dos pilares do Estado Constitucional do Direito, isto é, a coisa julgada.

 

Referências

[1] COMPARATO, Fábio Konder. Ação rescisória versus segurança jurídica. In: Genro, Camargo, Coelho, Maineri e Advogados Associados. Democracia e Mundo do Trabalho, ano 1, número 1, dezembro de 1997, p. 39.

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