Por Rogério Viola Coelho – OAB/RS 4.655
I – As emendas dos precatórios e sua aplicação imediata em 2022
As Emendas 113 e 114, editadas em dezembro de 2021, introduzem na Constituição um novo regime de pagamentos de precatórios, estabelecendo um teto de gastos anual com precatórios muito inferior ao montante dos créditos que tem sido habilitado em cada exercício nos últimos anos. Os créditos sobrantes ficam sem orçamentação, lesando dezenas de milhares de credores apesar da garantia da coisa julgada.
A maior parte dos credores que já tinham precatórios expedidos até 01 de julho de 2021 viram suspensa a inclusão de seus valores no orçamento para garantia de recebimento em 2022, porque o artigo 5º da EC 114 bloqueia o pagamento de requisitórios já expedidos seis meses antes da sua edição: “Art. 5°- As alterações relativas ao regime de pagamento dos precatórios aplicam-se a todos os requisitórios já expedidos, inclusive no orçamento fiscal e da seguridade social do exercício de 2022.”
A soma dos valores dos “requisitórios já expedidos” até 01/07/21 excedeu em 50 bilhões o montante disponibilizado no orçamento de 2022, em face do teto de gastos. Em consequência, mais de cem mil credores, situados na base da sociedade, foram lesados, vendo aqueles valores que já haviam ganhado sendo apropriados pela União, sem prazo para devolução. Tais créditos estavam PROTEGIDOS PELA COISA JULGADA, uma garantia institucional que produz o efeito de internalizar nos patrimônios individuais do vencedor o direito que era litigioso.
O cálculo do teto de gastos com precatórios para o exercício de 2022 partiu do gasto da União com precatórios em 2016 fazendo a correção até 2022 pelo IPCA. Desta forma, foi fixado um teto para 2022 em torno de 40 bilhões de reais para pagamento de precatórios. Mas ficou reduzido a 23 bilhões porque, no novo regime, a soma reservada para os créditos de pequeno valor (RPV), cerca de 17 bilhões, foi deduzida do teto. A verba sobrante ficou muito abaixo do montante do valor dos precatórios habilitados para 2022, que foi de aproximadamente 73 bilhões. Ficaram, assim, sem previsão orçamentária créditos que somam cerca de 50 bilhões.
Órgãos técnicos do Congresso estimam que, no fim de 2026, pode chegar a um milhão o número de credores não pagos, todos sem prazo certo para receber a integralidade de seus valores. E o montante acumulado da dívida da União pode chegar a um trilhão, o que irá induzir os poderes constituídos a fazer nova moratória.
O § 3º do art. 107-A do ADCT confere ao credor que não receber o seu crédito, em razão do teto, a faculdade de receber no fim do exercício subsequente, CONTANTO QUE ACEITE DESÁGIO PRÉVIO DE 40% e, ainda, uma negociação para aumentar a redução. O credor aceita o valor com redução substancial ou aguarda indefinidamente para receber a integralidade de seu valor.
Adiante, o § 11 desse artigo faculta ao credor, ou a terceiro adquirente de seus créditos, a utilização pelo valor nominal para: (1) quitação de dívidas com a Fazenda do ente federativo, (2) compra de imóveis públicos, (3) pagamento de delegações e concessões do ente público, (4) aquisição de ações em empresas de economia mista, e (5) pagamento das antecipações devidas à União para ampliar a participação das petrolíferas agindo em regime de partilha. O uso dos créditos sonegados com tais fins por empresas será mediado pelos habituais adquirentes de precatórios – os bancos de segunda linha, como o BTG e o Pactual – que impõem aos credores lesados reduções de 70 a 80% do valor. Posteriormente, esses créditos serão vendidos às empresas interessadas por preço próximo do valor de face.
Os valores habilitados em 2022 – já pertencentes aos seus titulares, em face da existência de coisa julgada – ficaram retidos indevidamente pela União, que estava obrigada a entregá-los até o fim de 2022, sem promessa de entrega futura de sua integralidade, lesando concretamente mais de cem mil credores.
II. A coisa julgada transfere o bem litigioso ao vencedor
A coisa julgada surge no processo civil, no fim do século XIX, para assegurar a conclusão do processo. Ainda no espaço do Direito Processual, a coisa julgada foi definida como uma qualidade da sentença ou um efeito dela decorrente quando esgotados os recursos, admitindo-se excepcionalmente a ação rescisória para correção de eventuais vícios graves do processo, com prazo exíguo. Já no início do século XX, as constituições a adotaram como garantia institucional para guarnecer os direitos individuais substantivos reconhecidos pela sentença, em face da lei nova.
A partir da Constituição de 1934, as constituições brasileiras consagraram a garantia com o enunciado – “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Na Constituição atual, o enunciado foi positivado no inciso XXXVI do artigo 5º, que inicia o capítulo dos direitos e garantias individuais. Mas a garantia institucional da coisa julgada tem força jurídica muito superior à garantia do direito adquirido e à do ato jurídico perfeito, que são enunciados juntamente com ela.
AFONSO DA SILVA assinala o efeito maior da coisa julgada material, dizendo que “tutela-se a estabilidade dos casos julgados, para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou definitivamente no seu patrimônio”.(1)
OVIDIO BATISTA, de forma mais ampla, leciona que a sentença executiva tem “o poder de operar uma mudança no mundo exterior correspondendo a transferência do valor jurídico do patrimônio do demandado para o patrimônio do demandante, onde tal valor deveria estar”. (2)
CAMPOS BATALHA leciona que “[…] a coisa julgada se considera unicamente a afirmação ou a negação de uma vontade do Estado, que garanta a alguém um determinado bem da vida no caso concreto; só a isto se pode estender a autoridade do julgado; com a sentença só se consegue a certeza da existência de tal vontade e, pois, a incontestabilidade do bem reconhecido ou negado”. (3)
Fica evidenciado, assim, que no caso da coisa julgada, adquire força a ideia de incorporação ao patrimônio do demandante beneficiado, o que não ocorre no direito adquirido. Com efeito, no caso de direito adquirido, o que ocorre é a incidência de uma norma abstrata e geral enunciada pela lei que estabelece os requisitos fáticos a serem implementados pelos sujeitos para que se opere o nascimento (ou o aperfeiçoamento) do direito. Já no caso da coisa julgada, o que ocorre é aplicação da lei pelo órgão do Estado por meio do devido processo legal, produzindo uma norma concreta para reger o caso particular, que faz lei entre as partes. Muito maior, portanto, a razão para a ocorrência de incorporação ao patrimônio do direito que fora objeto do litígio.
O reconhecimento da incorporação aos patrimônios individuais dos exequentes dos valores monetários que postulavam equivale a dizer que eles têm a propriedade desses valores. O direito de propriedade é consagrado no artigo 5º, caput, entre os direitos individuais fundamentais. O artigo 1228 do Código Civil conceitua que “O proprietário tem a faculdade de fruir, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
A propriedade dos exequentes sobre tais valores monetários foi mutilada. (I) A redução mínima de 40% do crédito imposta em favor da UNIÃO, ampliável pela negociação prevista, para receber no ano seguinte operaria uma redução substancial do direito. (II) A transferência aos receptadores habituais operaria a redução 70 a 80% dos valores devidos. (III) O direito de reaver a coisa fica suprimido com a inusitada ausência de qualquer data ou prazo para o seu pagamento normal no futuro.
Essa apropriação indevida dos valores monetários detidos pelo Estado, mas já pertencentes aos patrimônios individuais de seus credores, é análoga à apropriação que conforma o fato típico do crime de apropriação indébita definido no artigo 168 do Código Penal: “Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção”. Não falta nem mesmo a figura dos receptadores – os bancos que adquirem os créditos sonegados por preço vil e os revendem por valores próximos do preço de face – notórios destinatários da norma autorizativa da cessão dos créditos.
Diante da tipicidade descrita, impõe-se a indagação: Por emenda constitucional se faz um crime legal?
III. A garantia da coisa julgada pelas cláusulas pétreas
A garantia da coisa julgada para os direitos individuais, em face da lei nova, surgiu na Constituição de 1934 – “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Esta garantia foi repetida nas Constituições seguintes. Foi a Carta de 88 que elevou o patamar dessa garantia, impedindo sua vulneração por emendas constitucionais, fonte de abusos pelos poderes constituídos no exercício da restrita competência para fazer ajustes na obra da Assembleia Constituinte. A garantia da coisa julgada foi abrangida pelas cláusulas pétreas, que impedem o processamento de emendas à Constituição tendentes a abolir os direitos e garantias individuais.
Dispõe o artigo 60 da Constituição no seu parágrafo quarto:
4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda à Constituição tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação de Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
A eficácia do bloqueio instituído para conter a ação das maiorias eventuais investidas nos poderes constituídos em busca da redução de direitos individuais (políticos, civis e sociais) já foi assegurada pelo STF em julgados exemplares. Acórdão da Ministra ROSA WEBER elucida a questão:
Pode o constituinte reformador interferir na efetividade da jurisdição, nesse poder de realizar o Direito com plena eficácia vinculativa em lides já solucionadas por decisões com trânsito em julgado, ao abrigo, portanto, da autoridade da coisa julgada? Para mim, com todas as vênias, a resposta é negativa. Compartilho da compreensão dos que conferem exegese ampla às cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, do nosso texto magno.
Entendo que também o poder constituinte derivado ou reformador – e não apenas o legislador ordinário – está submetido ao postulado da irretroatividade consagrado no art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim, a meu juízo, a lei a que o constituinte originário veda prejudique o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada não é apenas a norma infraconstitucional, mas também a emenda constitucional. E interpreto a dicção do art. 60, § 4º, da CF – não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir, os direitos e garantias individuais –, no sentido de que também se encontram vedadas restrições equivalentes a uma efetiva supressão. Ora, o acesso à Justiça, a efetividade da jurisdição, a efetividade do processo como instrumento de tutela de direitos, a irretroatividade da lei frente ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada estão contemplados em nossa Constituição como garantias individuais, garantias fundamentais, e nessa medida foram erigidos à condição de cláusulas pétreas no texto constitucional. Todos esses postulados, com a devida vênia, foram atropelados pela Emenda Constitucional 62, em vários de seus ditames, como ontem já se decidiu, e, a meu juízo, da mesma inconstitucionalidade material se ressente o parágrafo quinze do artigo 100 da CF, com a redação da Emenda 62.
Subscrevo na íntegra os fundamentos do eminente Relator, Ministro Ayres Britto, quando conclui que os dois modelos de regime especial para pagamento de precatórios instituídos no ADCT, art. 97, afrontam a ideia central de Estado Democrático de Direito, violam as garantias do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário, 5º, XXXV, do devido processo legal, 5º, LIV, e da razoável duração do processo, 5º, LXXVIII, e afrontam a autoridade das decisões judiciais, ao prolongar por mais de quinze anos o cumprimento de sentenças judiciais com trânsito em julgado, já prorrogado por um decênio pela Emenda Constitucional 30, de 2000.
A doutrina liberal exacerba a competência para emendar a Constituição como um poder de emenda dos poderes constituídos chamado ‘poder constituinte derivado’, igual ao poder constituinte originário. Para SEPÚLVEDA PERTENCE, “a própria denominação ‘poder constituinte derivado’ visa encaminhar a fuga das suas limitações intrínsecas ou explícitas”, e que “na verdade, o que se tem é uma função constituinte entregue a um poder constituído, portanto limitável pela Constituição que o institui”. (4)
Esta ideologia anima a edição das emendas que instituem o “novo regime de pagamento de precatórios”, visando à apropriação indébita dos valores monetários de centenas de milhares de credores da base da sociedade, em benefício imediato do Estado e, mediatamente, dos receptadores habituais.
IV – O poder de exigir os valores dos seus créditos em razão de ter coisa julgada anterior à edição das emendas
Em face da impossibilidade jurídica, deduzida nos itens precedentes, da aplicação das emendas 113/114/2021 aos titulares de precatórios já habilitados antes da sua edição, está preservado o poder de exigir o recebimento dos valores já internalizados aos seus patrimônios individuais. Este poder de exigir é reconhecido pelo Direito Processual sem controvérsias, como um efeito incontornável do trânsito em julgado da sentença que reconheceu o direito ao valor do seu crédito.
CARNELUTTI observa que o Juiz decide porque os outros não podem decidir por si mesmos; já para isto, deviam chegar a acordo e assim não chegariam a litis. Para ele “la sustitución de la decisión del juez a la decisión de las partes, como motivo de la conducta de estas, se acostumbra a llamar eficacia imperativa da decisión”. Esse efeito é acompanhado da eficácia constitutiva ou resolutiva da decisão e da sua irrevogabilidade. (5)
Entre nós, CELSO DE MELLO destaca esta eficácia imperativa, decorrente da coisa julgada, como atributo da coercibilidade: “É importante rememorar no ponto, o alto significado de que se reveste no nosso sistema jurídico, o instituto a ‘res judicata’, que constitui atributo específico da jurisdição e que se revela pela dupla qualidade que tipifica os efeitos emergentes do ato sentencial: a imutabilidade, de um lado, e a coercibilidade de outro” (RExtr. 634.667 Distrito Federal, de 07. 05. 2013).
A nossa Constituição, considerando a eficácia imperativa da decisão judicial, ou sua coercibilidade, regula o procedimento para os credores cujos valores não foram incluídos no orçamento. No caso dos créditos sobrantes em 2022, cujos valores não foram incluídos no orçamento dos entes públicos, a própria Constituição indica o procedimento cabível. Dispõe o § 6° do Artigo 100 da Constituição Federal:
6º – As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exequenda determinar o pagamento integral e autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente para os casos de preterimento de seu direito de precedência ou de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação de seu débito, o sequestro da quantia respectiva.
As disposições normativas contidas nas emendas que visam a afastar a incidência da norma que assegura a eficácia imperativa da decisão judicial devem ser declaradas incidentalmente inconstitucionais.
A inconstitucionalidade do art. 5º da EC 114, que visa à aplicação das emendas em 2022, é incontornável, como foi demonstrado. Em consequência, é inaplicável aos precatórios já expedidos antes das emendas o artigo 3º da EC 113, que determina correção pela SELIC, uma única vez.
A atividade do Presidente do Tribunal no pagamento de precatórios é de natureza administrativa, mas ele pode acolher o pedido de sequestro apoiado nas manifestações e precedentes do STF.
Em caso de negativa do pedido de sequestro formulado pelos credores da União lesados, cabe mandado de segurança individual ou plúrimo, porque o direito é líquido e certo. O cabimento do mandado de segurança requer a existência de fatos incontroversos, e todas as questões de direito podem ser decididas no seu âmbito, segundo a doutrina uniforme. A inconstitucionalidade das normas contidas nas emendas, em especial da disposição do artigo 5º da EC 114, de 17/12/2021, constitui uma questão de direito e pode ser arguida e declarada incidentalmente.
O controle de constitucionalidade incidental-concreto no Brasil é exercido no desempenho normal da função jurisdicional; “qualquer juiz de qualquer grau de jurisdição pode e deve realizar controle de constitucionalidade do modelo concreto que, justamente por esta razão, tem feição difusa”. (6)
O controle é solicitado em qualquer momento, sendo adequado na fase da execução quando a norma inconstitucional se manifesta. No caso concreto, surgiu a sua aplicação quando se evidenciou a ausência de inclusão da verba necessária ao pagamento do valor devido.
As regras que deve observar a arguição incidental de inconstitucionalidade no caso concreto são assinaladas pelos autores citados:
Primeiro. A inconstitucionalidade pode ser examinada em qualquer tipo de processo, seja comum ou especial, de conhecimento, cautelar ou de execução.
Segundo. A fiscalização de constitucionalidade não pode ser o pedido principal da ação, mas tão somente um pedido incidental, relacionado com o julgamento do principal.
Além disto, deve-se observar a reserva de plenário, no caso de arguição perante os tribunais. Vale dizer, fica afastada a decisão monocrática.
É clara assim a diferença entre o controle incidental e o principal, realizado mediante as ações diretas e tendo como objeto principal a verificação da inconstitucionalidade
Cumpre observar, por fim, que o controle incidental de inconstitucionalidade no caso concreto surge no Brasil a partir da primeira constituição republicana de 1891 e vai se consolidando ao longo do tempo. Já o controle concentrado advém com a Constituição de 1988, com amplo rol de legitimados para a ação e tende a predominar a partir daí. De certa forma, o controle concreto, mediante a declaração incidental vem sendo menos usado, especialmente pelas novas gerações, que chegam aos embates do direito depois do surgimento do controle concentrado.
Cumpre reiterar que o controle concreto, que BONAVIDES examina como controle pela via de exceção, sobrevive e continua sendo um poderoso meio para a defesa individual de direitos fundamentais vulnerados pelos atos políticos dos poderes constituídos. (7)
Pode ainda ser acionado, na hipótese, o Mandado de Segurança Coletivo, previsto no artigo 5º, inciso LXX, estando legitimada a entidade sindical representativa dos servidores lesados pela aplicação das emendas (alínea b). TEORI ZAVASCKI leciona que:
O Mandado de Segurança Coletivo é espécie de ação coletiva, destinada a tutela direitos individuais homogêneos. Mutatis mutandis, os requisitos da petição inicial são semelhantes aos da ação individual de mandado de segurança, nomeadamente no que diz respeito à indispensabilidade de indicação da situação concreta que caracteriza violação ou ameaça aos direitos tutelados. Embora se trate de ação que, por tutelar interesses de muitas pessoas, não identificadas desde logo na inicial, resulta em sentença com algum grau de generalidade (como é próprio das ações coletivas), o mandado de segurança coletivo não visa a um objetivo abstrato. Supõe, ao contrário, situação concreta de lesão ou ameaça a direito, por parte de um ato ou de uma omissão de autoridade. (8)
V – O significado institucional do ato dos poderes constituídos no Estado Constitucional de Direito
Parece relevante verificar o significado institucional da conduta abusiva dos poderes Executivo e Legislativo revendo, para tanto, os fundamentos do Estado de Direito. A qualificação do Estado como Estado de Direito requer a combinação de três elementos constitutivos: a separação de poderes, o império da lei e a garantia do exercício dos direitos fundamentais. Este último se destaca porque, segundo o Preâmbulo da Constituição de 1988, a missão primeira do Estado democrático instituído pela Assembleia Constituinte é a de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”. A sua efetivação requer a garantia da inviolabilidade dos direitos fundamentais, o que exige a extensão de iguais garantias a todos os cidadãos em igual medida.
É evidente que a tutela jurisdicional já concluída no caso concreto, com a sentença transitada em julgado, foi desconstituída pela intervenção abusiva dos outros dois poderes, Executivo e Legislativo. Sendo a tutela jurisdicional a função constitucional do Poder Judiciário, a sua mutilação fere o primeiro princípio constitutivo do Estado de Direito, a separação de poderes, ofendendo a independência e equilíbrio entre os poderes.
O segundo elemento do Estado de Direito – o império da lei – é realizado em sua extensão a todos, sem distinção, o que é assegurado pelo postulado fundamental da igualdade perante a lei; essa igualdade impede a imposição de regimes de exceção discriminatórios de quaisquer grupos sociais. Tais exceções é que mutilam o império da lei ao excluírem uma parte do povo da sua tutela. A discriminação do grupo social dos pequenos credores da União guarnecidos pela coisa julgada é exacerbada.
Os credores lesados pela União são simultaneamente seus devedores por tributos diversos, a começar pelo Imposto de Renda, mas também por taxas sobre serviços públicos, como água e luz. As pequenas empresas, quando atrasam os tributos, são cobradas através de execução fiscal, com enorme força coercitiva. E todos os fornecedores dos credores da União, de todos os ramos, seguem dispondo de ações executivas com especial força coercitiva. Em especial dívidas com o sistema financeiro, quando atrasadas, dão ensejo a medidas reforçadas de cobrança. E suas obrigações crescerão com a mora que fatalmente ocorrerá em medidas variáveis.
Esse grupo da base da sociedade ficará, como se vê, sujeito a um cerco perverso. Por um lado, são discriminados repentinamente com a edição das emendas que bloquearam a aplicação da lei em seu favor, impedindo o recebimento de seus créditos. Por outro, seguem sujeitos à cobrança coativa das obrigações assumidas. A garantia fundamental da igualdade na aplicação da lei, consagrada no caput do artigo 5º, que abre o Capítulo dos Direitos e Garantias Individuais, foi nitidamente agredido. E o império da lei que a todos protege ficou reduzido, excluindo um grupo da base da sociedade do seu amparo, vulnerando o segundo pilar do Estado de Direito.
O terceiro elemento constitutivo do Estado de Direito é a garantia do exercício dos direitos fundamentais. Cumpre enfatizar que os créditos habilitados em 2021, para pagamento em 2022, já tinham ingressado nos patrimônios individuais dos vencedores dos processos quando foram editadas as emendas. Tais créditos não eram senão direitos individuais a valores monetários, recebíveis em prazo certo, em face da incidência da vontade da lei no caso concreto. Com o esvaziamento da força executiva dos títulos de crédito – os precatórios – operado pelas Emendas, o Estado (= poderes constituídos conluiados) se apropriou do valor monetário correspondente, sem a fixação de prazo para sua devolução. A ofensa à garantia do exercício dos direitos fundamentais assume aqui as feições da apropriação indébita, em que o detentor ou possuidor de bem alheio dele se apropria.
Evidenciado, portanto, que as emendas produzidas pelos poderes Legislativo e Executivo atingiram os três elementos constitutivos do Estado de Direito. A Constituição que o institui, prevendo que ele poderia ser vulnerado pela colusão entre os poderes constituídos, criou os meios de defesa e rejeição para garantir a sua preservação. A tutela jurisdicional é prestada pelo Poder Judiciário independente dos demais poderes. E o controle concentrado surge com o Tribunal Constitucional.
Primeiro, foi o controle incidental de inconstitucionalidade no caso concreto, que surge no Brasil já na primeira constituição republicana de 1891 e pode ser acionado individualmente por todos os cidadãos para a defesa dos direitos e garantias individuais. Já o controle concentrado foi instituído pela Constituição de 1988, com amplo rol de legitimados para a ação, tendendo a predominar a partir daí.
O controle concreto, mediante a declaração incidental, continua vigente e é acionado frequentemente, sem dependência do controle concentrado, pelos cidadãos individualmente.
Notas
1 AFONSO DA SILVA, José. In: Comentário Contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 135.
2 Pontes de Miranda. Tratado das Ações, cit., pp. 122 e 212.
3 CAMPOS BATALHA, Wilson de Souza. In: Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 199.
4 SEPÚLVEDA PERTENCE, José Paulo. O controle de constitucionalidade das emendas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal: Crônica de Jurisprudência. In: Revista Direito do Estado, Tomo 1. Editora Max Limonad.
5 CARNELUTTI, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal. Colección Estudios Jurídicos, Editorial Pedagógico Iberoamericano. México, pág. 438/9.
6 DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. In: Curso de Processo Constitucional. São Paulo: Atlas, 2011, p. 297.
7 BONAVIDES, Paulo. In “Curso de Direito Constitucional”, Malheiros Editores. São Paulo. 11ªed. -2001. Pág. 272.
8 ZAVASCKI, Teori Albino. In: Processo Coletivo. Rev. dos Tribunais, 6ª ed. – 2008. p. 234.
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