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Exclusão digital e os desafios dos direitos previdenciários e a assistenciais na era tecnológica

Beatriz Lourenço Mendes

Advogada OAB/RS 112.079

 

A principal característica que diferencia a estrutura dos direitos sociais dos seus correspondentes, ou seja, dos direitos civis e políticos, é a imposição de uma obrigação positiva ao Estado. O ente estatal deve conceder prestações positivas aos cidadãos, como o direito à saúde, à educação, ao trabalho, dentre outros. Para a perfectibilização desses direitos, não basta que o Poder Público se abstenha de agir, mas, ao contrário, deve necessariamente alocar recursos financeiros e administrativos para garantir que essas prestações sejam oferecidas de forma eficaz e equitativa à população.

Quanto aos direitos de seguridade social, essa obrigação é imposta pela Constituição Federal em seu art. 194, segundo o qual compete ao Poder Público assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Tendo em vista o comando constitucional, além dos postulados de tratados internacionais sobre direitos sociais, a exemplo do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), entende-se que o direito à seguridade social é um direito humano e fundamental.

Os direitos prestacionais, principalmente a previdência e a assistência social, guardam relação intrínseca com o conteúdo do mínimo existencial, já que possuem o condão de garantir a segurança alimentar da população que se encontra impossibilitada de prover o próprio sustento, seja por eventos que incapacitem o exercício de trabalho ou ainda pelo advento da idade, deficiência e/ou exclusão social.  A concretização desses direitos está sujeita a uma série de diretrizes previstas constitucionalmente. Dito isso, merece destaque especial a observância do princípio da universalidade da cobertura e do atendimento.

Conforme esse princípio-guia, as prestações da seguridade social buscam maximizar o impacto da política pública, tanto garantindo que os benefícios sejam financeiramente adequados para atender às necessidades sociais (viés objetivo) quanto assegurando que a proteção social cubra todos os indivíduos elegíveis de acordo com critérios estabelecidos (viés subjetivo). Todavia, as mudanças proporcionadas pela globalização e pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) podem alterar o cenário de otimização da proteção social devida ao cidadão.

A pandemia de coronavírus eclodida no ano de 2020 demonstrou dois fenômenos sociológicos diferentes no cenário brasileiro. De um lado, fomentou a aceleração do processo de automatização de tarefas e processos. De outro, expôs a exclusão digital vivenciada por uma parcela considerável da população brasileira. A imposição do distanciamento social como medida de segurança para conter a propagação do vírus provocou um deslocamento do eixo das atividades civis exercidas de forma analógica para o ambiente virtual.

As consequências dessas transformações para os serviços públicos refletiram na exigência de atendimento a distância como condição necessária ao exercício de direitos básicos. Informações sobre saúde, vacinas e, inclusive, o acesso ao benefício de renda básica denominado Auxílio Emergencial[1] tiveram sua concessão condicionada à solicitação via aplicativo, situação que gerou a exclusão de famílias mais pobres à referida prestação assistencial[2].

Esse é só um exemplo dos severos impactos que os direitos previdenciários e assistenciais estão sujeitos, diante da automatização do aparelho estatal e, mais especificamente, da Administração Pública, responsável pela gestão desses benefícios. Aprovada no ano de 2021, a Lei do Governo Digital[3]  tem como objetivo transformar a forma como os serviços públicos são disponibilizados no Brasil, promovendo a oferta digital e, idealmente, o autosserviço[4], que é definido pela própria lei como aquele prestado sem a intervenção humana.

Em que pese a mesma legislação preveja que a digitalização dos serviços ocorrerá sem prejuízo ao direito do cidadão ao atendimento presencial[5], o que se observa por meio da práxis cotidiana é que já existe uma limitação no exercício de uma série de direitos sociais prestacionais de forma presencial. Sob o pretexto da modernização, os atendimentos presenciais espontâneos nas agências do INSS foram banidos e agora dependem de prévio agendamento por telefone ou pelos canais digitais[6].

Ademais, as previsões legislativas de que o acesso a serviços digitais deve alcançar a população de baixa renda, residente em áreas rurais e idosos, por si só, não garantem que parcelas marginalizadas digitalmente façam o uso institucional da internet e, consequentemente, sejam beneficiadas pelas políticas públicas a elas destinadas. Na verdade, ocorre justamente o contrário, os grupos mais necessitados de políticas públicas assistenciais são os que menos conseguem obter benefícios a partir da navegação on-line, seja por falta de infraestrutura ou ainda pela ausência de domínio das habilidades digitais necessárias para tanto.

Portanto, este cenário implica numa transferência do ônus do Poder Público enquanto responsável pelo fornecimento de direitos sociais prestacionais ao cidadão, em completa contrariedade à atribuição da responsabilidade estatal pela gestão dessas políticas públicas. Ademais, esta estratégia ainda mitiga o princípio da universalidade, na medida em a prestação digital não alcança todos os sujeitos potencialmente beneficiados pelas políticas previdenciárias e assistenciais.

Em síntese, defende-se que o uso das novas tecnologias deve sempre observar o aprimoramento do bem-estar social e, quando empregadas pelo Poder Público, devem atuar em consonância com os direitos fundamentais garantidos. Sobretudo as transformações digitais na previdência e na assistência social devem ser encaradas de forma crítica, visto que estas possuem como objetivo a proteção social de idosos, pessoas com deficiência e em situação de pobreza, os quais, simultaneamente, compõem a parcela de marginalizados digitais.  Portanto, a busca pelo equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos sociais é um desafio importante na era digital, exigindo um cuidadoso exame das políticas e práticas para garantir que nenhum cidadão seja deixado para trás na era tecnológica.

  

 

 

[1] DECRETO Nº 10.661, DE 26 DE MARÇO DE 2021.

[2] Vide: “Exclusão digital deixa famílias pobres sem auxílio emergencial”. Disponível em: http://www.info4.com.br/ver/exibir.asp?Yw=NDA0MQ&YQ=MTQzMg&bA=MTcxOTc1Mg&b3JpZ2Vt=Mw. Acesso em 13 de setembro de 2023.

[3] LEI Nº 14.129, DE 29 DE MARÇO DE 2021: Dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública e altera a Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação), a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, e a Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017.

[4][4] Art. 14, parágrafo único, da Lei n.º 14.129/2021.

[5] Art. 14, caput, da Lei n.º 14.129/2021.

[6]  Vide: https://www.rs.gov.br/carta-de-servicos/servicos?servico=605. Acesso em 13 de setembro de 2023.


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