Por Tarso Genro, advogado, ex-governador do Estado do RS, ex-ministro da Justiça – tarfert@gmail.com ;
e Kianne Nicoletti, advogada (OAB/RS nº 112.094), especialista em Direito Público – kianne.nicoletti@direitosfundamentais.adv.br.
“O soberano privado supra estatal está constituído pelo poder estratégico conjunto
das grandes companhias transnacionais
e sobretudo, hoje, dos conglomerados financeiros”.
É o que diz Juan Ramón Capella.
No Brasil, em meados da década de 90 foi instituído o Plano Real, a conversão do “cruzeiro real” para a Unidade Real de Valor – URV. No âmbito previdenciário tal conversão foi tratada pela Lei nº 9.873/99 que fixava, para os já participantes do seguro social, um marco para a concessão dos benefícios: a apuração da média salarial das contribuições a partir de julho/94, quando da instituição do Plano Real.
Seu sentido seria limitar o período contributivo do cidadão, após tal marco, um novo cálculo para a mesma moeda. Na verdade, a nova lógica monetária fazia um corte no período de contribuições do segurado, que gerou uma redução do valor da aposentadoria, já que o seu salário de benefício era instituído com base na média aritmética simples dos últimos salários: no máximo de 36 meses.
Foi desta conexão que surgiu a chamada tese jurídica da “revisão da vida toda”, que tinha, genericamente, o objetivo de fazer com que o INSS considerasse todos os salários contributivos do segurado, ao longo do período da base de cálculo, ainda que contribuições em cruzeiros (ou cruzeiros reais), sem a limitação do marco de julho/94.
A argumentação da referida tese tinha por base a consideração de que o segurado – quando do advento de uma reforma previdenciária – poderia optar pela regra mais benéfica, ainda que não a de transição.
A pretensão dos atingidos pelo novo cálculo “imperativo” não tinha por fim discutir a constitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.876/99, que determinou o marco de cálculo a partir da instituição do plano real, mas buscar uma adequação jurídica, portanto, estendendo a aplicação da regra permanente – prevista no artigo 29 da Lei 8.213/1991 – de forma que os segurados que iniciaram a vida laborativa em tenra idade, não fossem prejudicados pelo “esquecimento” de anos de contribuição, em razão do marco prejudicial instituído no Plano Real.
A questão parecia resolvida em 2019, quando o Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento do princípio da “aplicação da norma mais favorável”, reconhecido como universal na constelação do Direito Social, tese que ainda não surtiu os efeitos desejados. O recurso escolhido como paradigma e afetado como tema, desembocou no Supremo Tribunal Federal para ser votado no plenário virtual até o dia 8 de março, faltando apenas o voto do ministro Alexandre de Moraes, que desempataria o placar de 5 x 5, firmado entre os demais integrantes da Corte.
No pronunciamento do seu voto favorável, acompanhando o então relator do processo, a posição que seria consagrada faria a fusão de dois elementos centrais do constitucionalismo social, integrando – num mesmo acórdão histórico – a “efetividade” do Estado Constitucional de Direito, de uma parte e, de outra, o princípio da inviolabilidade dos direitos. Ambos os elementos centrais conectados no caso concreto – bloqueando a força normativa “fática” e política do soberano privado supra estatal, que comanda as reformas liberais e flexibiliza a força normativa da Constituição.
“Querem quebrar o país” , disse a voz financeira do cálculo “inventado”, omitindo que a decisão seria, não uma invenção jurídica, mas o reconhecimento material de contribuições vertidas pelos segurados nos tempos que imperava a inflação. A Previdência Social, ao contrário das demais áreas da seguridade, tem caráter contributivo. E ela exige, para a concessão de qualquer benefício, a vinculação a um sistema de contribuições mensais (artigo 201 da CF).
Foi assim ementado o recurso especial afetado:
“É certo que o sistema de Previdência Social é regido pelo princípio contributivo,
decorrendo de tal princípio a necessidade de haver, necessariamente,
uma relação entre custeio e benefício, não se afigurando razoável
que o segurado verta contribuições
e não possa se utilizar delas no cálculo de seu benefício.”
(REsp º 1.554.596 – SC / 2015/0089796-6).
A voz da restrição foi a do ministro Nunes Marques, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, que pediu destaque para que o julgamento fosse retomado em pauta presencial, essencialmente, anulando todos os votos já proferidos e reiniciando do zero, o julgamento.
Foi uma verdadeira agressão às funções da Corte Suprema numa democracia constitucional, que no plano jurídico se aproxima do cadafalso.
Texto originalmente publicado em Espaço Vital
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