top of page
shutterstock_1022254765.jpg

Tarso Genro: A tendência do constitucionalismo “discursivista” transforma os juízes diretamente em a


Em estudo que publicarei em breve, sobre a dogmática na crise do Estado Social, procuro dar uma contribuição para quem está interessado em pensar uma hermenêutica destinada a construir uma interpretação constitucional que, mantendo os pressupostos dogmáticos tradicionais da ordem constitucional, acorde um esforço de recuperação da força normativa da Constituição. Neste pequeno artigo exclusivo para o Espaço Vital abordo alguns dos alguns dos fundamentos, que apresento na futura publicação, principalmente relacionados à interpretação constitucional no âmbito da crise do Estado Social. Nas sociedades onde impera o Estado de Direito foi plasmada uma diferença de fundo, em relação às sociedades primitivas “ou selvagens” nas quais, a vida se desenvolvia “sem direito”, carente portanto de parâmetros normativos.


A inteligência desta diferença hoje parece simples, mas a sua emergência foi um enorme salto na formação do direito ocidental, tal qual o conhecemos agora: o Estado, ao compor normas jurídicas de diversos graus – através de uma sucessão de rupturas nas formas de reprodução social – promoveu, em sequência, a formação de uma consciência jurídica de exigências sofisticadas, para regular a vivência comum através de normas, que cotidianamente exigem ser “interpretadas”.


Esta interpretação – no direito moderno – tanto pode ser um ato ordinário, que se move segundo um consenso (ou já vem dele), como pode gerar conflitos e exigir processos decisórios especiais, destinados a dirimir os conflitos. A “interpretação”, portanto, integra um conjunto de conexões, que se vinculam a um novo cotidiano social da existência humana, orientado pelas regras ideais do mundo do Direito. Estas se destinam a cada indivíduo – isoladamente -, aos coletivos sociais e promovem regras que autolimitam o poder do Estado. A interpretação das normas, contudo, está de tal forma separada daquilo que era “natural” ou “espontâneo”, nas sociedades primitivas, que pode gerar graves conflitos.


Estes conflitos mais graves se originam do choque entre a vontade constituinte subjetiva (cuja teleologia no Estado Social é a “igualdade”), de um lado e, de outro, as formas concretas do desenvolvimento (econômico), cujo sentido – frequentemente – aponta para o aumento das desigualdades. A legitimidade do uso da força pelo Estado, detentor do monopólio da violência legítima – poder de produzir leis e instaurar a ordem – encontra-se, nesta contradição, entre “fatos” que desigualam e “normas” que reduzem desigualdades, em profunda crise. E ela é de tal monta que já necessita socorrer-se da força material da “exceção”, presente com frequência no cotidiano global: a cobrança da dívida pública, por exemplo, exerce uma forte pressão sobre os Estados endividados, de tal forma que pode instaurar um poder normativo superior à Constituição, esvaziando desta forma a concepção iluminista de soberania.


A soberania, porém, é que dá sentido comunitário e legitimidade aos poderes que instalam a ordem. As atuais formas de crise, portanto, maximizam esta problemática, ao agravarem o choque dos “pressupostos jurídicos e políticos do Estado Social”, com as “reformas” (apontadas como necessárias para viabilizar o Estado) desacomodando completamente o “pacto social” que emergiu do poder constituinte. A dogmática tradicional reluta em assimilar – neste contexto – que as formas de acumulação privada desreguladas geram uma forte oposição entre o “direito posto” e a pretensão de um “direito justo“, que fora buscado na decisão constituinte do Estado Social. Esta problemática, aliás, está ausente no pensamento positivista do primeiro Kelsen, que é fundado nos princípios do formalismo, mas está presente no Kelsen maduro, quando este já enfrenta a questão da “Justiça Constitucional”, como condição de existência da democracia.


Com esta segunda visão, Kelsen não desiste das suas ideias de democracia formal, vinculada à “pureza” das leis da ordem, mas as mantém, exigindo que as normas válidas se sustentem no pacto democrático (mormente nos seus aspectos constitucionais) e, em consequência, aproximando a política das “formas” jurídicas puras, através da vontade política constituinte. É possível – assim – identificar duas fases, na elaboração “kelseniana” da teoria “pura” do Direito.


A primeira, ligada principalmente à dimensão “formal” do conceito; e a segunda, onde são desenvolvidos os seus aspectos “substanciais”, em relação à plena afirmação da força normativa da constituição, determinada pela política constituinte. Essa elaboração, que tem reflexos em todos os países ocidentais – em maior ou menor grau – leva à concepção de “Justiça Constitucional”, que é por Kelsen apontada como “condição de existência” da democracia. Nessa perspectiva, muda a ideia mesma de democracia, da qual Kelsen sublinha a partir dali os seus aspectos “constitucionais” [1], aproximando a constituição da vontade democrática soberana e emprestando “valor” político e jurídico à vontade constituinte do “povo empírico”, logo, ao próprio Preâmbulo da Constituição. Ao contrário desta valorização do Preâmbulo – no caso – dos conflitos entre a ordem formal e a realidade da acumulação do capital, o que tem ocorrido é a valorização da “exceção”, quando o direito formal torna-se amorfo e perde a sua força cogente.


A tendência do constitucionalismo “discursivista”, então, que transforma os juízes diretamente em atores políticos na cena pública, não emerge de maneira gratuita, pois é filha da necessidade de uma “nova” narrativa política. Esta busca justificar o convívio com a “exceção”, pela qual aceita ou rejeita o “déficit” da força normativa da Constituição, quando ela debilita a “imperatividade” dos direitos fundamentais : de um lado expressa a visão degradada da adesão à “mínima” à efetividade dos direitos fundamentais e, de outro, reza pela adesão “máxima” aos “imperativos” da ordem financeira global.


O “discursivismo”, todavia, abre sempre uma dupla possibilidade, pois “a teoria do discurso mostra que a argumentação prática racional é possível. Mas ela também torna claro os limites do argumentar prático racional: alguma coisa, como, por exemplo, o núcleo dos direitos do homem e os princípios fundamentais da democracia, é discursivamente necessária; alguma coisa, como por exemplo, a escravidão, é discursivamente impossível; muita coisa, porém, é meramente discursivamente possível. Pode-se, no caso da possibilidade discursiva, de modo racional, tanto derivar para uma solução como para o seu contrário”.


[2] O Preâmbulo da Constituição é o banco dos valores – depositados e sumulados – dos direitos subjetivos, que se pressupõem presentes nas normas da Constituição. Os Bancos Centrais dos países do capitalismo maduro, portanto, são o espaço onde são gerados os fatos – a força normativa do fático – que suprimem a existência do Estado Social.

[1]COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (Org.). O Estado de Direito: história, teoria, crítica. Tradução de Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 381.

[2]ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p.9.

Comments


WhatsApp-icone.png
bottom of page