Por Helena Ramos de Castro*
No início do mês de outubro de 2024, a governadora do Estado do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), sancionou a Lei nº 11.935, que em seu art. 1º estabeleceu que a leitura de textos bíblicos poderá ocorrer nas escolas como recurso didático e paradidático para disseminação cultural, histórica, geográfica e arqueológica no âmbito do Estado do RN.
A referida lei, apesar de declarar a liberdade de opção religiosa e filosófica, vedando a obrigatoriedade de participação dos alunos da rede pública, levanta questões críticas em relação à laicidade do Estado brasileiro.
Para compreender melhor a questão, é importante recordar do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4439 do Supremo Tribunal Federal. À época, a Procuradoria-Geral da República (PGR) questionava o modelo de ensino religioso nas escolas da rede pública de ensino do país.
Por maioria dos votos, os ministros compreenderam que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras pode ter natureza confessional, ou seja, estar vinculado às diversas religiões. A maioria dos ministros compreendeu que a facultatividade da disciplina se revela suficiente para resguardar a liberdade religiosa e a laicidade do Estado.
Para o ministro Alexandre de Moraes, como o Estado é laico e vigora a liberdade religiosa, os alunos não podem ser obrigados a frequentar essas aulas, porém, tais disciplinas podem ser fornecidas no currículo, conforme previsto no art. 210, § 1º da CF/88.
Em sentido contrário, votou ministro Celso de Mello, ao entender que o Estado laico não pode ter preferências de ordem confessional. Em seu voto afirmou que o Estado deve se manter em posição de estrita neutralidade axiológica para preservar a integridade do direito fundamental à liberdade religiosa.
Observa-se, portanto, que a lei promulgada no Estado do Rio Grande do Norte pode suscitar críticas quanto à laicidade do Estado, estabelecida na Constituição. Uma vez que a inclusão de trechos bíblicos como recurso didático e paradidático pode ser vista como um favorecimento de uma visão religiosa, em detrimento de outras religiões.
É necessário refletir se a mera vedação de obrigatoriedade de participação nas atividades promovidas pela Lei nº 11.935 é capaz de traduzir a neutralidade do Estado em relação às demais religiões professadas no país.
Nesse sentido, o voto do ministro Celso de Mello reverbera um parecer fiel à Constituição ao dispor que o ensino religioso nas escolas públicas não deve ser confessional ou interconfessional pois tal medida fere o postulado constitucional da laicidade do Estado republicano brasileiro. Acertadamente, o ministro afirmou que não compete ao estado, que precisa observar estrita neutralidade nesse domínio, exercer atividade de difusão de ideias ou apoiar crenças religiosas, quaisquer que sejam.
Chega-se à conclusão de que a Lei nº 11.935/24, ao permitir o uso da Bíblia como recurso pedagógico nas escolas, ainda que vede a obrigatoriedade de participação dos alunos na atividade, acaba por ferir a laicidade prevista na Constituição, uma vez que o Estado não pode legitimar tratamentos diferenciados para as religiões que permeiam a sociedade brasileira.
Por fim, para ilustrar a assustadora problemática vivenciada no país, de acordo com a reportagem da BBC Brasil o número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil aumentou 106% em apenas um ano. Passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma média de três por dia. Segundo a reportagem, o Estado recordista foi São Paulo (270 denúncias), seguido por Rio de Janeiro (219), Bahia (172), Minas Gerais (94) e Rio Grande do Sul (51).
Assim, a promulgação da Lei nº 11.935/24 levanta um dilema sobre a laicidade do Estado brasileiro, vez que a inclusão de textos bíblicos como recurso pedagógico, mesmo sem obrigatoriedade, pode ser interpretada como uma concessão a uma visão religiosa singular, prática que contraria o princípio de neutralidade que deveria reger as instituições públicas, podendo até mesmo acentuar a intolerância religiosa em um contexto no qual as denúncias desse tipo têm crescido de forma exponencial. Portanto, entende-se que a simples vedação à obrigatoriedade de participação não é suficiente para garantir um ambiente educativo verdadeiramente inclusivo e respeitador das múltiplas crenças que coexistem no Brasil.
Mais importante que sancionar leis que autorizem a leitura de textos sagrados em sala de aula, seria a promoção de diálogos interculturais que respeitem todas as religiões, no intuito de fomentar um ambiente escolar, acima de tudo, plural e acolhedor.
*Helena Ramos de Castro é advogada, Mestre em Direito (UFPel) e integrante da equipe RVC - Rogério Viola Coelho Advogados.
Foto: Getty Images
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