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Emergência climática: o papel do Estado na preservação do meio ambiente

Campo jurídico discute alternativas para garantir proteção ambiental e buscar atualização de legislações nacionais e internacionais sobre o tema

 

Marcelo Passarella

 

Com os recentes eventos climáticos extremos acontecendo em todo o mundo, é notável a preocupação de especialistas e da sociedade em geral sobre os impactos negativos para a saúde do planeta e da população. As enchentes que destruíram o Rio Grande do Sul e as queimadas que permeiam boa parte da Amazônia e do Cerrado são somente alguns exemplos de como a ação humana está colocando em xeque a própria sobrevivência da sua espécie nas próximas décadas. E infelizmente o Brasil é um dos países que está no centro desse debate.


Segundo reportagem da Agência Brasil, mais de 70% das queimadas registradas na América do Sul nas duas primeiras semanas de setembro aconteceram no Brasil. Conforme o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o país registrou até a última terça-feira (24), mais de 203 mil focos de queimadas em 2024. Somente no mês de setembro, esse índice supera 76 mil focos, quase o triplo do segundo colocado, a Bolívia, que tem mais de 28 mil incidências de queimadas. As queimadas para práticas agrícolas são consideradas crime com pena de dois a quatro anos de prisão.


Além dos óbvios prejuízos para a fauna e flora das regiões atingidas, os gases tóxicos oriundos desse processo se acumulam na atmosfera e formam grandes camadas de poluição. Nesse caso, esses gases se espalharam por todo o país devido às correntes de ar e afetaram a qualidade do ar, provocando prejuízos à saúde da população, como problemas respiratórios e aumento do risco de doenças crônicas, como câncer e até transtornos neurológicos, como autismo e TDAH.


Os grandes volumes desses gases também provocam alterações climáticas bastante prejudiciais, como aumento das temperaturas na atmosfera e nos oceanos, gerando chuvas em grandes volumes (como as registradas no território gaúcho entre abril e junho), além de furacões (como nos EUA e Japão) e períodos intensos de estiagem – como ocorre atualmente na região centro-oeste do país (e deve ocorrer no Rio Grande do Sul nos próximos meses).


Levando em conta os indícios apontados pela Polícia Federal sobre a possibilidade de ação humana deliberada para provocar esses incêndios, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou uma série de medidas para combater o alastramento do fogo nos biomas nacionais.  Entre elas, está a realização de um mutirão de investigação das polícias federais de todo o país para identificar responsáveis, com diligências e incursões nos locais de queimadas.


O ministro do STF Flávio Dino afirmou que o país vive “uma pandemia de incêndios florestais”. Segundo ele, o combate às queimadas deve ser feito em conjunto pelos Três Poderes, a exemplo do que ocorreu durante as enchentes registradas no RS.


"Não podemos normalizar o absurdo. Temos que manter o estranhamento com o fato de que 60% do território nacional está sentindo os efeitos dos incêndios florestais e das queimadas. Isso é um absurdo, isso é inaceitável. Temos que reconhecer que estamos vivenciando uma autêntica pandemia de incêndios florestais", disse ele.


O governo se comprometeu a apresentar, dentro de um prazo de 90 dias, um Plano Nacional de Enfrentamento às Queimadas, que deve ser colocado em prática no ano que vem.  Por meio de medida provisória que abre crédito extraordinário para diversos ministérios, serão destinados R$ 514,5 milhões para iniciativas emergenciais para combater os incêndios e a estiagem.  

 

Necessidade de atualização de dispositivos legais

 

Hoje, a legislação sobre o tema está ancorada em dispositivos constitucionais e leis relativamente antigas aprovadas por governos anteriores. Entre elas, estão a Política Nacional do Meio Ambiente, instituída em 1981 e incrementada em 2010, que prevê um plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado.


Contudo, outras leis até regrediram, como é o caso da regulamentação sobre os agrotóxicos no Brasil. O Projeto de Lei 1459/2022, conhecido como o PL do Veneno, que foi vetado pelo presidente Lula após aprovação no Senado, teve vetos derrubados posteriormente pelo Congresso, em maio deste ano. Isso garantiu a flexibilização da fiscalização e ampliou a margem de pesticidas que podem ser utilizados no país.


Outro ponto que dá margem para a transgressão de leis ambientais é a flexibilidade do Código Florestal brasileiro. Conforme o advogado FIlipe Ferreira Delmondes, do escritório Rogério Viola Coelho, a mais recente legislação foi aprovada em meio a uma forte pressão da bancada ruralista e lobby de empresários do setor, em 2012. Ele avalia que diversos pontos que poderiam ter sido vetados pela então presidente Dilma Rousseuf (PT) foram sancionados.  


“O Código Florestal aprovado em 2012 é bastante frágil, apesar de ter dispositivos de prevenção de queimadas. Infelizmente, por conta do lobby e do contexto político, a presidente não vetou diversos pontos problemáticos dele, e é o que vige até hoje”, assinala Delmondes.

 

Número de mortes por desastres naturais aumentou sete vezes nos últimos anos

 

Apesar do negacionismo que rodeia o tema, hoje já é possível afirmar com bastante precisão que os eventos climáticos extremos que ocorrem no país e no mundo estão diretamente conectados com o chamado aquecimento global, ou seja, a elevação anormal da temperatura média do planeta. Esse evento, conforme já apontado por cientistas, é fruto da ação do homem, principalmente em relação à emissão de gases que se acumulam na atmosfera.


Dentre os fatores que provocam o aquecimento global estão a poluição do ar e das águas; a queima de combustíveis fósseis; atividades industriais e de transporte; agropecuária; descarte de resíduos sólidos; queimadas e desmatamento.


Em 2023, de acordo com dados da ONU, o número de mortes no mundo causadas em função de desastres naturais foi de 74 mil, ou seja, sete vezes maior do que a média registrada nos cinco anos anteriores. Essa tendência também é vista no Brasil. Conforme o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas e Desastres Naturais (Cemaden) mesmo antes das enchentes registradas nesse ano, o aumento de eventos atípicos no país já apresentava um índice recorde de 1.161 desastres naturais em 2023, o maior desde o início desse tipo de levantamento, em 2011.


Os dados mais recentes sobre as enchentes do RS apontam pelo menos 183 pessoas mortas e outras 27 que ainda constam como desaparecidas. Durante as chuvas, mais de 600 mil pessoas ficaram sem casa e outras 800 ficaram feridas. As chuvas começaram no dia 27 de abril e se estenderam até meados de maio, atingindo mais de 470 municípios, transbordando as bacias dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos e Gravataí.

 

Atuação judicial para a proteção do planeta e de populações vulneráveis

 

A emergência climática representa um grande desafio para o campo jurídico. Levando em conta o Direito Constitucional e os Direitos Fundamentais, são discutidas com frequência novas abordagens diante do tema, inclusive com a proposição de um novo ramo jurídico, chamado do Direito Constitucional Climático.


Isso vai ao encontro de disposições previstas na Constituição Federal, que, em seu artigo 225 determina que: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.  


“O direito ambiental brasileiro é amplamente constituído tendo como parâmetro a Constituição de 1988 e a Política Nacional do Meio Ambiente, criada em 1981. Essa política reflete a necessidade de uma proteção maior sobre o meio ambiente para a preservação dos recursos naturais, pensando nas gerações futuras. A partir daí, percebe-se que o Estado tem um papel central na criação das normas ambientais, pretendo regularizar a prática agrícola, ocupação do solo e queimadas”, explica o advogado Filipe Delmondes e a assistente jurídica Gerusa Pena, do escritório Rogério Viola Coelho.


Entretanto, diante do cenário crítico que se apresenta para as próximas décadas, com falta de recursos, temperaturas elevadas e propensão maior do planeta a desastres ambientais, juristas e sociedade em geral já discutem meios de reforçar as legislações existentes e criar novos dispositivos jurídicos para contemplar a questão ambiental e a necessidade de preservação do planeta para a sobrevivência da espécie humana.  


O cumprimento ao Acordo de Paris, firmado em 2016 entre 195 países, é uma das principais ações para reduzir a emissão de gases tóxicos na atmosfera e refrear o efeito estufa. Contudo, muitos países não respeitam as suas diretrizes e compram carbono de fontes externas, o que é uma forma de “burlar” algumas diretrizes do acordo.


Para Filipe Delmondes e Gerusa Pena, independente da questão global, um dos caminhos para garantir maiores índices de preservação é o fortalecimento de órgãos de controle e fiscalização. “Nós temos já dispositivos legais na Política Nacional do Meio Ambiente, que incentivam métodos alternativos de obtenção de energia e pela agroecologia. Precisamos fortalecer o ICMBio e o Ibama, que são os órgãos de fiscalização e controle. Porém, esses órgãos já ficaram seis meses em greve, em meio a difíceis negociações com um governo considerado progressista. Temos que ter uma política de Estado, e não de governo”, afirmam.


Em artigo publicado no site Consultor Jurídico, a juíza e conselheira do Conselho Nacional de Justiça, Renata Gil, destaca que as populações vulneráveis, como meninas e mulheres em situação de pobreza, serão as mais atingidas pelo caos climático nas próximas décadas.


“De dezembro de 2023 até 2050, a mudança climática colocará mais de 158 milhões de meninas e mulheres em situação de pobreza e levará mais 236 milhões de mulheres à fome”, comenta Renata, ao citar dados do relatório das Organizações das Nações Unidas (ONU) “Feminist Climate Justice: Um modelo para ação.


A juíza destaca ainda que a questão ambiental passou a ser abordada de forma diferente em âmbito jurídico a partir de um posicionamento da Suprema Corte da Holanda, no final de 2019. Naquele momento, a Corte determinou que o governo holandês cortasse as emissões de gases do efeito estufa no país em 25%.


“Foi a primeira vez que um Estado foi obrigado por um tribunal a adotar medidas concretas contra a mudança climática. A Corte Constitucional Holandesa manteve a decisão de primeiro grau e ordenou expressamente ao governo que reduzisse suas emissões de gases de efeito estufa”, afirma a especialista.


Renata Gil avalia que a questão climática certamente será alvo de litígios e indenizações aplicadas inclusive ao poder público ao longo dos próximos anos. Essas situações vão exigir novos “fundamentos teóricos e técnicos dos integrantes do sistema de justiça”.

 

Especialistas apontam necessidade de novas políticas de mitigação

 

As responsabilidades dos estados em relação às emergências climáticas foram tema de uma série de audiências públicas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), realizadas em Manaus no final de maio. O evento reuniu organizações de diversos países e especialistas para propor novas políticas de mitigação visando proteger populações vulneráveis e ações de proteção ambiental que contemplem os direitos das gerações futuras.


“O direito humano ao meio ambiente saudável impõe aos Estados obrigações substanciais, procedimentais e especiais para grupos em situação de vulnerabilidade”, comentou uma das oradoras do evento, a advogada Mayara Justa. Ela comentou ainda que essas determinações devem ser norteadas por princípios como a não-discriminação e a equidade intergeracional.


Outro ponto abordado pela especialista foi a necessidade de transição energética com base nos parâmetros do Acordo de Paris. Conforme Justa, essa mudança deve ser acompanhada do respeito a comunidades tradicionais e populações originárias, uma vez que em muitos locais nos quais existe a implantação de energia eólica, a paisagem e o próprio meio ambiente sofrem alterações que impactam as relações sociais e a vegetação desses locais.  


Um desses casos está na Chapada do Araripe, região na qual vivem os remanescentes do Quilombo da Serra dos Rafaéis. A comunidade reclama dos transtornos causados pela presença das hélices, como os altos ruídos causados pela estrutura, que aumentam conforme a força dos ventos e gera dificuldades para dormir. Além disso, existe o aumento da incidência de raios e da morte de animais, em especial, voadores. 

“Cada vez mais, vemos o deslocamento de comunidades indígenas e quilombolas por conta do desmatamento, fogo e invasão ilegal de suas terras. A prioridade do governo não é preservar o meio ambiente, tanto que chama a atenção esse valor de R$ 400 bilhões investido pelo governo no Plano Safra (linhas de crédito para impulsionar o setor agropecuário brasileiro). Seria fundamental que a pasta do Meio Ambiente recebesse pelo menos metade desse recurso. Mas isso ainda é utópico e precisamos avançar bastante”, afirmam Filipe e Gerusa.


Foto em destaque: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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