Por Filipe Ferreira Delmondes – OAB/RS 127.409
No Rio grande do Sul, no último dia 16 de janeiro, pelo menos duas pessoas morreram vítimas de um temporal que atingiu o estado. Em Porto Alegre, em apenas uma hora, foram cerca de 70 mm de chuva, com rajadas de ventos que passaram dos 120 km/h.
Diversos bairros ficaram sem energia. O prefeito Sebastião Melo (MDB), defensor da privatização dos serviços públicos na capital gaúcha, sequer conseguiu comunicação com o Grupo Equatorial, responsável pela gestão da Companhia Estadual de Distribuição Elétrica do RS (CEEE-D).
Dentre as grandes questões em curso no país, está aberto o debate sobre as privatizações das empresas estatais, responsáveis pela prestação do serviço público. O acesso à energia elétrica pode ser categorizado como um direito social?
Diversas necessidades básicas compõem a vida da classe trabalhadora. Essas necessidades vão muito além do acesso à saúde ou educação (direitos fundamentais, conforme art. 5º da Constituição brasileira, pois a própria manutenção da saúde e da boa alimentação são direitos que dependem de outros, de acesso a outros bens que devem ser considerados, tal como o acesso à energia elétrica, ao tratamento e abastecimento de água, saneamento básico etc.
O Direito Constitucional brasileiro possui diversos objetivos fundamentais. Podemos citar alguns relevantes, tais como o compromisso com: “a erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III); disciplina, no artigo 6° (direitos sociais) da Constituição Federal, as necessidades vitais básicas. E por que energia não seria uma delas? Além disso, no art. 23º, I, aponta que é de “competência comum” da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios zelarem pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e “conservar o patrimônio público”. Destarte, a Constituição privilegia a “conservação” do patrimônio público como regra de competência geral.
Além disso, no artigo 173 da Carta Magna, observamos um tratamento próprio para determinar a imposição da “segurança nacional” ou de “relevante interesse coletivo” como requisito da manutenção e continuidade das empresas estatais e suas subsidiárias.
Mas a realidade parece outra. O Grupo Equatorial, que passou a atender cerca de 1,8 milhões de pessoas em diversas cidades do estado gaúcho, adquiriu a CEEE-D por 100 mil reais[1], mesmo valor, aproximadamente, de um automóvel tido como popular nos dias de hoje. Houve um compromisso republicano de amplo debate sobre o destino de uma das maiores estatais do estado gaúcho?
Em menos de um ano depois, a mesma empresa demitiu quase mil trabalhadores, especialmente aqueles e aquelas trabalhadoras/es qualificados, com experiência em manutenção de redes de distribuição, subtransmissão, redes subterrâneas e de subestações[2].
Em menos de um ano, a CEEE Equatorial conseguiu o feito de ficar na última posição na lista da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) como a concessionária com pior qualidade de serviços prestados. De acordo com este ranking, a penúltima é a Equatorial do Maranhão, e a antepenúltima a Equatorial de Goiás. Coincidência?[3]
Isto é, podemos pontuar dois resultados: lucro de quase 1 bilhão[4] somente no último trimestre de 2023 para os bilionários donos da empresa, e milhares de pessoas sofrendo há mais de uma semana sem energia elétrica, correndo até risco de vida[5].
Ora, percebemos evidentes violações constitucionais, a saber: ofensa à soberania brasileira em desfavor do capital estrangeiro, o interesse privado se sobrepondo ao interesse coletivo, a ofensa à dignidade humana (e por que não, com risco à sobrevivência) das populações afetadas.
Desse modo, é urgente o debate sobre as privatizações entre o parlamento e a sociedade, em contexto que pretendemos democráticos, na tentativa de elucidar os interesses da prestação do serviço público, para que o povo tenha conhecimento e participe efetivamente dos processos de decisão política.
Nesse sentido, é relevante mencionar a decisão liminar do então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) à época, Ricardo Lewandowski, no julgamento da ADI 5.624 que suspendeu as privatizações das empresas estatais e suas subsidiárias previstas na lei 13.303/2016. O Ministro seguiu o entendimento do artigo[6] publicado na Folha de São Paulo, em que alertou:
A transferência do controle desses recursos a estrangeiros ou mesmo a nacionais, sem garantias sólidas de que sejam rigorosamente empregados em prol do interesse coletivo, acaba por minar os próprios fundamentos da soberania, não raro de forma irreversível.
Internacionalizar ou privatizar ativos estratégicos não se reduz apenas a uma mera opção governamental, de caráter contingente, ditada por escolhas circunstanciais de ordem pragmática. Constitui uma decisão que se projeta no tempo, configurando verdadeira política de Estado, a qual, por isso mesmo, deve ser precedida de muita reflexão e amplo debate, pois suas consequências têm o condão de afetar o bem-estar das gerações presentes e até a própria sobrevivência das vindouras.
Contudo, pelo visto, o apagão que deixou mais de 800 mil pessoas sem energia no estado do Amapá por mais de 22 dias [7] não serviu de exemplo. A pergunta que fica: é possível pensar em algum país sério que pense no futuro em que a energia é controlada por meia dúzia de bilionários em desfavor de milhões de brasileiros?
Referências
[1] Leilão da CEEE-D teve apenas uma empresa concorrendo, que a arrematou por míseros 100 mil reais. Para ver mais: https://www.estado.rs.gov.br/grupo-equatorial-e-o-vencedor-de-leilao-de-privatizacao-da-ceee-d . Acesso em 30. Jan 2024.
[2] Cerca de 50 % do efetivo pessoal aderiu ao programa de demissão voluntária promovida pela Equatorial Energia. Para ver mais: https://www.brasildefators.com.br/2022/03/14/pacote-de-demissoes-e-a-causa-do-desastre-no-atendimento-da-equatorial-diz-sindicato . Acesso em 31 jan. 2024
[3] Para uma exposição mais detalhada, observar a reportagem exclusiva da revista Carta Capital: https://www.cartacapital.com.br/politica/apagao-privatista/. Acesso em 01 fev. 2024.
[4] Uma empresa privada só tem um objetivo: lucro. Para ela ter mais lucro, precisa aumentar a receita ou diminuir o custo. Não há outra possibilidade. Em tese, existe a defesa de que a privatização aumenta a produtividade (quantidade do que é produzido ou gerado de serviço). Conforme reportagem do Jornal Valor Econômico, o Grupo Equatorial Energia teve lucro de quase 1 bilhão no último trimestre. Para ver mais, acesse: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/11/08/equatorial-energia-tem-lucro-lquido-de-r-9277-milhes-no-3-trimestre-alta-anual-de-587-pontos-percentuais.ghtml . Acesso em 31 jan. 2024.
[5] Moradores do bairro Paternon, na Zona leste de Porto Alegre relatam “o descaso extremo” da CEEE Equatorial. Para ver mais: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/cidades/ap%C3%B3s-24-protocolos-na-ceee-grupo-equatorial-paciente-com-c%C3%A2ncer-e-marido-passam-13-dias-sem-luz-em-porto-alegre-1.1462266. Acesso em 31 jan. 2023.
[6] Para mais detalhes, acesse: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/06/ricardo-lewandowski-soberania-nacional-e-ativos-estrategicos.shtml. Acesso em 31 Jan 2023.
[7] Completou 3 anos um dos maiores blecautes da história do país. Para saber mais acesse: https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2021/11/03/apagao-no-amapa-completa-1-ano-e-expos-fragilidades-no-acesso-a-energia-eletrica-no-estado.ghtml . Acesso em 31 jan. 2024
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