Por Rogério Viola Coelho
O Estado moderno emergiu do mundo medieval, a partir do século XV, numa “guerra de duas frentes”, como dizem os historiadores. De um lado, foi demarcando com o poder espiritual da Igreja e, por outra parte, foi afirmando‑se como um poder centralizador, que submetia os poderes feudais, corporativos e particularistas. Desse processo, surgiu um Estado absolutista, constituído como um poder acima do direito, personalizado na figura do monarca, que era o senhor das leis. A sua vontade absoluta – a voluntas – se impunha aos súditos sem limitações, instituindo‑se uma racionalidade unipessoal autoritária, voltada para perpetuar os privilégios.
Com a formação do Estado absolutista, foi mantida a estrutura econômica feudal e a nobreza manteve seu poder social, limitado agora pela soberania do monarca. Mas o poder soberano se exercia com a participação da nobreza; ela integrava órgãos do Estado, tais como os Conselhos do Monarca e os Parlamentos, que constituíam redutos cerrados deste estamento dominante na sociedade, realizando uma mediatização do poder do Rei, que era orientada normalmente para manter os privilégios, além de deter um poder social limitado, conformando a suzerania[1]. Essa integração mantinha o Estado inseparado da sociedade.
No interior do Estado absolutista, a burguesia emergente era beneficiária das políticas econômicas mercantilistas promovidas pelos monarcas investidos no poder do Estado, mas estava afastada dos lugares de governo, e os burgueses individualmente podiam ser lesados pela atividade administrativa frente à qual estavam sem qualquer proteção. Era dominante a concepção organicista da sociedade, sendo os indivíduos vistos como partes não autônomas de um todo, como as células do corpo. Os plebeus eram privados de quaisquer direitos, mas estavam sujeitos à punição; os pobres estavam expostos ao despotismo punitivo. Sem que houvesse definição prévia de suas faltas, eram condenados e executados sem julgamento, em nome de Sua Majestade.
O Estado absoluto tinha uma legitimação religiosa. O monarca era o portador da vontade divina no território do reino; a sociedade era assim governada por uma vontade exterior. E durou alguns séculos esta heteronomia, vale dizer, um governo através de normas vindas do além. E a Igreja era parceira do poder terreno instituído, veiculando a ideologia hegemônica que garantia a resignação com a pobreza terrena, sustentando a promessa do paraíso futuro, post morten.
Com a sucessão de guerras entre os reinos e as guerras religiosas, foram se debilitando as economias e crescendo as crises sociais. Neste contexto, foi se ampliando a resistência ao absolutismo, e o movimento da ilustração surgiu como consciência crítica da sociedade frente ao arbítrio repressivo do ancien regime, assim como à intolerância política e religiosa. Foi principalmente diante da falta de garantias individuais e da inexistência de direitos que foi sendo gestada em oposição ao Estado Absoluto a ideia da democracia desde a base da sociedade em oposição ao sistema heterônomo, foi crescendo o ideal da autonomia da sociedade. Uma vontade imanente em oposição ao domínio secular de uma vontade transcendente.
Esta vontade imanente seria, conforme a feliz expressão de Rousseau, a vontade geral do povo. Esta vontade geral é que iria consagrar os direitos e garantias individuais por meio da lei escrita. Os homens passariam a ser governados pelas leis, por eles mesmo postas. A lei, assumindo a forma de lei escrita, daria maior segurança aos indivíduos, com a previsão de tudo que era proibido, sendo tudo o mais permitido. As relações jurídicas estabelecidas na vida cotidiana passariam a ter previsibilidade. Essa previsibilidade era a segurança necessária para a fluidez das operações mercantis em expansão – aspiração basilar da burguesia. A segurança primeiro visada era frente ao Estado, que teria seu poder interventivo limitado e controlado, cabendo-lhe ainda a obrigação de garantir a execução e a aplicação da lei para conferir previsibilidade às relações interpessoais.
A codificação dos delitos e das penas representaria o fim do arbítrio punitivo, pela ciência prévia de todas as ações proibidas e sancionadas penalmente. E os códigos de direito privado viriam propiciar o conhecimento prévio dos procedimentos aptos à obtenção dos efeitos desejados na vida civil, em particular daqueles que dariam ensejo à aquisição de direitos e à assunção de obrigações, especialmente através dos contratos.
A transformação descrita correspondia a um processo de racionalização da vida social. Conforme concebida pelo Iluminismo, ela não se restringia à regulação das atividades do Estado; haveria de abranger toda a vida social. É certo, como observa NOVAIS que, esta racionalização era requerida essencialmente pelas necessidades de cálculo e segurança inerentes à produção capitalista.3 Vale dizer, era um imperativo do modo de produção capitalista, correspondendo aos interesses da burguesia emergente, que já se tornara a classe economicamente hegemônica. Mas ela foi assumida como utopia pelo conjunto da sociedade, à exceção da nobreza feudal, que mantinha os seus privilégios e o monopólio da propriedade da terra. Na base da sociedade, formada por camponeses e artesãos urbanos, havia interesse objetivo na eliminação da desigualdade institucionalizada da sociedade estamental e na consagração da igualdade formal, que estabelecia a expectativa da igualdade real, propagada como promessa da nova classe hegemônica, posicionada na vanguarda do processo.
A narrativa da democracia moderna frequentemente suscitava o contraste com a democracia antiga, nascida na Grécia nos séculos V a.c. e o ponto mais relevante era situado no conceito de liberdade. Para os gregos, a liberdade era associada à ação política, o valor fundante era a participação nas decisões da comunidade sobre todos os temas, em igualdade de condições, nas praças públicas, desde a igualdade no tempo de fala até a igual acessibilidade aos cargos de governo. Era a denominada igualdade positiva. Os antigos, segundo a celebre conferência de CONSTANT, “quanto mais tempo e mais energia consagrava o homem ao exercício dos direitos políticos, mais livre se acreditava”.
A liberdade consagrada na institucionalização do Estado moderno foi a liberdade negativa, com o significado de não interferência, em primeiro lugar do Estado, e logo a seguir dos outros homens, prevalecendo a ideia de a liberdade de cada um terminava onde começava a liberdade do outro. A primeira na dimensão vertical e a segunda nas relações horizontais, interindividuais. A instauração dessa forma de liberdade gerava um indivíduo voltado para a vida privada, desinteressado das atividades destinadas à participação na formação do poder político.
A atribuição ao homem moderno de desinteresse pelo processo político, que será determinante das suas condições de vida, é naturalmente um gesto ideológico que corresponde aos interesses da burguesia ascendente. A vontade geral posta na lei não seria pré-existente. Ela seria formada no processo político, que teria uma função constitutiva da vontade geral.
A institucionalização da revolução francesa teve dois momentos sucessivos: A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de agosto de 1791, e a primeira Constituição, de setembro de 1791.
A DECLARAÇÃO – I) começa dizendo que homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos, e em seguida acresce que pode haver distinções fundadas sobre a utilidade comum. II) Após consagrar os direitos básicos sentencia que toda a soberania pertence a nação, naturalmente para afastar a soberania do povo (as constituições repetiram esse jargão; só na constituição republicana de 1870 surgiu a soberania popular); III) Segue dizendo que a liberdade consiste no poder de fazer tudo que não chega a prejudicar a outro, no qual tem seu limite, e o seguinte traz a garantia de que a lei não proibirá senão o que for prejudicial à sociedade e que nada pode ser imposto ou impedido se não estiver na lei. Isto assegura a liberdade frente ao Estado, configurando os dois preceitos sobre a liberdade uma esfera de autonomia para a vida privada. O enunciado seguinte sentencia que a lei é a expressão da vontade geral e os cidadãos têm o direito de concorrer para sua formação diretamente ou por seus representantes. A Constituição dirá que os não proprietários não poderão nem eleger representantes. A declaração prevê o direito de reunião, mas silencia sobre a liberdade de associação que o texto da Constituição proibirá especialmente para os profissionais e ofícios.
A CONSTITUIÇÃO – I) No seu preâmbulo, já veta o direito de associação: “Il n’y a plus ni jurandes, ni corporations de professions, arts e métiers”. E já no título primeiro, ela dispõe que, “como a liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica o direito do outro, nem a segurança pública, a lei pode estabelecer as penas contra os atos que, atentando ou contra a segurança pública ou contra os direitos de outros, serão nocivos à sociedade”.
Com base nesses enunciados, positivados no topo do ordenamento do Estado liberal, a Assembleia Nacional aprovou, no mesmo ano de 1791, a lei que levou o nome de seu propositor, o deputado LE CHAPELIER destinada a criminalizar as associações profissionais, lei que vigorou por noventa anos, ao longo de quase todo o século XIX. Dispõe esta lei:
A aniquilação de todas as espécies de corporações de cidadãos do mesmo estado ou profissão, sendo uma das bases fundamentais da constituição francesa, são proibidas de serem restabelecidas de fato, sob quaisquer pretexto e forma que seja.
Os cidadãos de um mesmo estado ou profissão, os empresários, os que tem loja aberta, os trabalhadores e companheiros de uma arte qualquer não poderão, quando se encontrarem reunidos, nomear-se nem presidente, nem secretários, nem síndicos, manter registros, tomar decisões e deliberações, formar regulamentos sobre seus pretendidos interesses comuns.
É proibido a todos os corpos administrativos ou municipais de receber qualquer carta ou petição para denominação de um estado ou profissão, de lhe dar alguma resposta; e lhes é ordenado que declarem nulas as deliberações que possam ter tomado desta maneira, e de velar zelosamente para que não lhe seja dada nenhuma sequência nem execução.
Se, contra os princípios da liberdade e da constituição, cidadãos ligados às mesmas profissões, artes e negócios, tomaram deliberações ou fizeram entre si convenções tendendo a atribuir um só preço determinado como garantia de sua indústria ou de seus trabalhos, as ditas deliberações e convenções, acompanhadas ou não de juramento, são declaradas inconstitucionais, atentatórias à liberdade e à declaração dos direitos do homem, e nulas de efeito; os corpos administrativos e municipais serão obrigados a declará-las assim. Os autores, chefes e instigadores, que as provocaram, redigiram ou presidiram, serão citados perante o tribunal de polícia, à requisição do procurador da comuna, condenado cada um a uma multa de 500 livres, à suspensão dos direitos de cidadão ativo durante um ano e de participar de todas as assembleias primárias. […][2]
Parece que nessa época, em que já se formavam as tecelagens para atender aos mercadores, já era previsível o surgimento da primeira revolução industrial, espraiada pelo continente europeu em meados do século XIX, atraindo multidões para as fábricas – homens, mulheres e crianças – suportando jornadas de dezoito horas diárias. Se pensarmos que a criminalização dos movimentos associativos dos trabalhadores contribuiu para conter a resistência dos operários fabris, apoiados pela maioria da sociedade, até o final do século XIX, somos tentados a reconhecer a eficácia da lei repressiva. Mas, para a continuidade da hegemonia da burguesia nesse quadro histórico, teria sido insuficiente a força do aparelho repressivo do Estado, necessitando também de seus aparelhos ideológicos.
[1] Cfme. Eduardo Garcia De Enterría.
[2] Tradução Prof. Luiz Arnaut. UFMG. Departamento de História. Textos e documentos. Disponível em: <https://www.fafich.ufmg.br/hist_discip_grad/>.
[3] NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito: Do Estado de Direito liberal ao Estado social e Democrático de Direito. Coimbra,1987, p.35.
Imagem: <https://commons.wikimedia.org/>
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